Thursday, May 05, 2011

Amador sem coisa amada

Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.

          António Gedeão 

Wednesday, May 04, 2011

Eu, que sou feio...

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero  estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura. 
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável, 
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez não o suspeites!- 
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num  pedestal.

                         Cesário Verde

Monday, May 02, 2011

Ai que tudo isto me mata...



A Angústia Insuportável de Gente

Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Ah, a angústia insuportável de gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!

(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.)

Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Sunday, May 01, 2011

E como queria ir contigo...

Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!

Traz tinta encarnada para escrever estas coisas!

Tinta cor de sangue verdadeiro, encarnado!

Eu ainda não fiz viagens

E a minha cabeça não se lembra senão de viagens!

Eu vou viajar.

Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.

Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa.

Depois venho sentar-me a teu lado.

Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!

Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa.

Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exatamente para a nossa casa, como a mesa. Como a mesa.

Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

Almada Negreiros

Vamos ser felizes...



Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.
Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo, continue.
Se sentir saudades, mate-a.
Se perder um amor, não se perca!
Se o achar, segure-o!

Fernando Pessoa